Imagem: makyzz
Autoria: Julian F. Guimarães
Data: 17 nov. 2022
Corria o ano de 1943 na cidade de Vichy, na França ocupada por nazistas, quando um sacerdote chamado André Trocmé foi interrogado por oficiais da polícia francesa simpáticos ao regime de Adolf Hitler. A suspeita, confirmada posteriormente, era de que o clérigo estaria conspirando para resgatar judeus que seriam entregues às forças nazistas. Segundo Garret Keizer, escritor norte-americano e autor de um influente artigo publicado na Harper’s Magazine sobre o clérigo, Trocmé deixou o interrogatório duplamente atordoado: não esperava que seus planos houvessem sido descobertos, para começo de conversa; e, especialmente, saiu perturbado da clausura pela repentina revelação que lhe ocorrera: compreendeu, naquele momento, que havia não duas, mas três forças em busca de soberania no mundo: o bem, o mal e a estupidez.
Essa epifania experimentada por André Trocmé não representa, de modo algum, o surgimento ou a descoberta da estupidez humana, e muito menos o seu declínio — de gente estúpida, o mundo sempre esteve e estará cheio. Mas o fanatismo religioso e político parece intensificar a inépcia de boa parcela da população. À semelhança dos antolhos usados por cavalos para limitar sua visão, uma mistura de notícias falsas disseminadas por redes sociais, intolerância religiosa e política e um tiquinho de deficiência cognitiva culminou num verdadeiro festival de idiotices e palhaçadas nos primeiros dias de novembro aqui no Brasil.
Insatisfeitos com o resultado das eleições de 2022 para a presidência da República do Brasil, grupos de pessoas que se autointitulam patriotas bloquearam as principais rodovias do país numa tentativa de alterar o pleito nacional. Além disso, muitos “patriotas” postaram-se à frente de quartéis militares pedindo intervenção militar, numa clara afronta à democracia. Nada de novo no front sob o governo Bolsonaro. Felizmente, para a alegria da maioria da população brasileira, algumas dessas cenas foram registradas para a posteridade (imagine a dificuldade de explicar aos nossos filhos e netos os eventos “patrióticos” que aconteceram depois das eleições de 2022 sem esses vídeos). 
Da coleção indiscutivelmente primorosa de tolices reunidas nesse vídeo, aproveito este espaço para eleger e comentar um pouco as minhas três favoritas. Os critérios adotados na análise envolvem execução de projeto, identificação com os valores golpistas e originalidade das idiotices empregadas. Portanto, que rufem os tambores! And the Oscar goes to… Patriota do Caminhão! Sim, o patriota do caminhão, com seu outfit impecável de patriota do zap, incluindo o indispensável boné “Bolsonaro 2022” e as roupas com as cores da seleção de futebol tupiniquim, lidera a minha lista de melhores demonstrações da estupidez humana, Edição Brasil-2022. O único problema desse vídeo é que ele acaba. Convicto de suas alienações políticas e inspirado pela valentia que só um grupo de WhatsApp pode nutrir, o Patriota do Caminhão demonstrou a coragem inabalável de um verdadeiro estúpido, defendendo com bravura as suas ideias antidemocráticas num ato heroico pelo bem do povo brasileiro. Por sua firmeza ignorante e atitude destemida de se agarrar ao para-choque de um caminhão em pleno movimento, é ele o grande vencedor desta humilde lista.
A inegável qualidade das outras demonstrações de estupidez humana reunidas no vídeo dificultou a escolha dos demais colocados. Contudo, depois de uma intensa e acirrada análise, em que aspectos como performance da alienação e representação dos valores éticos e morais golpistas se mostraram decisivos, anuncio o Tio da Cloroquina como segundo colocado nessa lista. Os motivos são muitos e superam a estética da estupidez. A bandeira do Brasil que repousa sobre seu ombro esquerdo, a marcha militar estravagante e excessiva que desempenha na rua sob a chuva (elemento essencial para a identificação de um ato heroico) e os gritos retumbantes que ele emite em sua apresentação foram fundamentais no resultado desta escolha. Parabéns ao Tio da Cloroquina.
Em terceiro lugar estão os Patriotas Cabeças de Papel, com sua alegoria lúdica e bem-humorada das forças armadas. Diante do prédio do Tiro de Guerra 07-010 em Mossoró, município no Rio Grande do Norte, um grupo de pessoas devidamente vestidas com as cores da camisa da seleção brasileira de futebol marcham com bandeiras do Brasil em fila indiana, à semelhança das brincadeiras infantis que acontecem nas escolas brasileiras. Uma importante referência à identidade cultural do país, resgatando com distinção e competência os elementos infantis presentes no imaginário de todo brasileiro e brasileira. Uma salva de palmas aos Cabeças de Papel!
Apesar de as demonstrações de estupidez não se restringirem às cenas incluídas nesse vídeo, ainda assim a esperança de que a maioria da população brasileira deseja a democracia e a sanidade parece dominar o cenário político brasileiro. A vitória de um político compromissado com a democracia e a redução das desigualdades sociais é um sinal dessa mudança. Por isso, embora a estupidez promova cenas por vezes divertidas e curiosas, resta-nos a tarefa de compreender os meios pelos quais esses grupos de pessoas se formam, o modo como eles se retroalimentam cotidianamente de estupidezes difundidas e sabidamente falsas por redes sociais e engajar-se na tarefa extenuante mas necessária de conscientizar os “patriotas” da importância da democracia e do Estado de Direito.

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