Reza a lenda que Isaac Newton fez algumas das suas descobertas mais brilhantes durante a Grande Praga de Londres, uma epidemia de peste bubônica que assolou a Inglaterra entre 1665 e 1666. Longe de mim me comparar a Newton (eu que nem gosto de matemática), durante esta pandemia de coronavírus eu me contentaria com a finalização da leitura de algum dos livros que estão na minha cabeceira há sei lá quanto tempo. Foi graças a essa inspiração newtoniana, estimulada pela atual pandemia, que corri para a minha estante escolher alguma obra. Antes de revelar minha escolha, preciso mencionar a verdadeira infinidade de leituras obrigatórias que tenho a trabalho e estudo. Portanto, o livro que eu pinçaria na minha cabeceira pressupunha uma única mas importante característica: que fosse pequeno. Que atire a primeira pedra quem nunca escolheu um livro pelo seu tamanho.
Foi a partir dessa ansiedade e inspiração newtonianas que a quarentena rebenta na gente que finalmente achei meu companheiro perfeito: Mudança, do escritor chinês Mo Yan. Não conhecia nada desse livro ou de seu autor. Comprei esse petardo no famoso bota-fora que a fetichizada editora Cosac Naify fez do seu estoque quando anunciou o encerramento de suas atividades. Baita promoção. Naquela ocasião, eu sabia apenas que o autor havia ganhado o Nobel de Literatura em 2012. Se tem Nobel, deve ser bom, pensei. E felizmente acertei.
Mo Yan é o pseudônimo de Guan Moye, escritor nascido numa família simples de lavradores na China ainda sob o governo de Mao Tsé-Tung. Nessa espécie de livro de memórias, vamos acompanhando o amadurecimento do autor em uma sociedade pautada sobretudo pela inflexibilidade nas estratificações sociais. Resumindo: se você nasceu pobre, dificilmente vai sair dessa condição ao longo da sua vida. Nesse contexto social, assim como a maioria dos jovens de sua época, a única forma que o jovem autor encontrou de driblar essa condição foi ingressando no exército. Ao mesmo tempo que percorremos a biografia de Mo Yan, conhecemos a trajetória de um país fortemente marcado pela repressão e pelo trabalho extenuante. O único Partido Comunista da China surge como um espectro que ronda tudo e todos, ocupando papel central numa sociedade onde as relações humanas são balizadas pela produção e pelo labor exaustivo.
O título da obra não é inocente, evoca uma ideia que define com precisão a essência do que é a China: um país em permanente mutação. O título também nos remete, sem querer, à reviravolta que um vírus — que, por coincidência, pode ter iniciado seu percurso de devastação na própria China — provocou em todo o mundo. As grandes mudanças causadas pelo novo coronavírus, absolutamente imprecisas e confusas (quanto tempo vai durar? Como será depois que voltarmos à “normalidade”?), arrastam-nos a uma realidade em que a constante ameaça de novos surtos de epidemias e desastres ambientais parece cada vez mais permanente. E essa ambiguidade de aceitar mudanças drásticas como algo permanente surge justamente como a tônica que vai nos guiar durante um bom e desconhecido tempo. Como disse o historiador francês Jérôme Baschet, “de agora em diante, toda estabilidade aparente não será mais do que a máscara de uma instabilidade crescente”. Que fase, meu amigo, que fase.
Mas paremos com digressões e voltemos ao livro.
O filósofo húngaro Georg Lukács, num ensaio chamado “Narrar ou descrever?”, comenta a capacidade que a literatura tem de captar e fornecer imagens da sociedade que não são encontradas em fontes documentais. Para Lukács, essa competência que a narrativa literária articula acontece principalmente a partir da “necessidade de configurar-se de modo adequado a novas formas que se apresentam na vida social”. Por isso, podemos pensar as memórias de Mo Yan como a trajetória da própria China, a trajetória intelectual e afetiva do indivíduo como reflexo dos fenômenos que emanam do coletivo. Essa é uma das razões pelas quais esse pequeno e grandioso livro torna-se ainda mais interessante: ler essa autobiografia ficcionalizada, como o próprio Mo Yan a define, é entrar em contato com as práticas sociais de um país distante e diferente em muitos aspectos da nossa realidade ocidental, mas cujas mudanças sociais, estéticas e ambientais vivenciamos em todo o planeta.
Separados por mais de 350 anos de Isaac Newton, nosso isolamento pode não incluir a descoberta da Lei da Gravidade, mas pode, quem sabe, incentivar-nos a esvaziar momentaneamente a nossa cabeceira (ao menos até que novos livros ocupem esse lugar tão disputado); podemos, a partir dessa experiência que a literatura nos proporciona, descobrir um pouco mais sobre nós mesmos, nos humanizarmos. Citando Antonio Candido, “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada”. Por isso, diante de todos os últimos acontecimentos, pandemia, isolamento social, mudanças climáticas e tudo o que ameaça gravemente a vida humana, nossa única e indubitável certeza é de que precisamos de Mudanças.