Nelson Rodrigues disse certa vez que “não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”. Talvez esse fosse o subtítulo perfeito para o romance A relíquia, de Eça de Queirós, que tive o prazer de editar para a Fora do Ar.
O enredo da obra, de um modo geral, poderia muito bem ser o roteiro de um filme cult dos anos 1980: Teodorico, conhecido por seus amigos como Raposão, é um jovem pobre e hedonista que vislumbra herdar uma grande fortuna de sua tia Dona Maria do Patrocínio. No entanto, Patrocínio é uma pessoa bastante religiosa, e qualquer vestígio de libertinagem em seu sobrinho pode significar o fim de seus planos. Por isso, o jovem disfarça até onde pode as suas reais ambições. A relação que se estabelece entre tia e sobrinho, distante daquela familiaridade desinteressada e fraterna que domina as propagandas de margarina, é marcada por interesses que vão de encontro aos valores celebrados pelo catolicismo.
Em determinada cena, nosso protagonista queima um pedaço de resina para disfarçar o “delicioso cheiro da Adélia” de suas roupas e barba. Afinal, para pôr as mãos na fortuna de Dona Patrocínio, seria preciso “que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: ‘É santo!’”. Assim, Raposão começa a frequentar várias missas ao dia, sempre relatando à sua tia a sua diligência com os assuntos religiosos. Seus planos parecem dar certo. Animada com os constantes elogios à figura de Teodorico, Dona Patrocínio decide enviá-lo à Terra Santa com o objetivo de que seu sobrinho lhe traga uma “relíquia milagrosa”. Consigo até mesmo imaginar a trilha sonora para o longa-metragem: enquanto o Raposão esbanja o dinheiro de sua tia numa viagem por Jerusalém, Iggy Pop berra ao fundo “I have a lust for life, ‘cause of a lust for life”.
Eça de Queirós sempre foi um escritor atento à realidade à sua volta e, como consequência, um incansável crítico aos frágeis valores que erigem a família tradicional burguesa. Primos, padres, sobrinhos, tias e tios completam a galeria de personagens de seus livros. Dele, estamos acostumados aos imbróglios entre esposa, marido e agregados de um Primo Basílio, ou às paisagens bucólicas de A cidade e as serras. Em ambos, um fio os costura sob o nome de realismo. Por isso, diante de um livro tão inovador como esta Relíquia, nós, leitores que adoramos colocar autores nas caixinhas estanques dos movimentos literários, ficamos um pouco perdidos. Afinal, é uma obra realista? Ou seria realismo fantástico? Como afirma Antonio Augusto Nery, autor do excelente texto de posfácio que completa esta edição da Fora do Ar, o livro não pode ser caracterizado como representante deste ou daquele gênero. Isso por causa da “alternância entre a fantasia, o burlesco, o grandioso e o humor”. Então nos resta aceitar a indefinição de sua estética. É a vida.
Neste livro de Eça de Queirós, o leitor encontrará todos os elementos que marcaram a obra do autor português, como a crítica aos valores conservadores e instituições burguesas de sua época (e que perduram ainda hoje). A ironia e o humor de Eça também estão presentes no romance, que reflete sobre a falsidade e dissimulação nas relações humanas e as aparências que cobrem as dinâmicas estabelecidas entre as pessoas. Pensando bem, o subtítulo que o próprio autor inseriu no livro é mesmo perfeito: “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”.