Quando nós, sujeitos do século XXI, buscamos referências sobre o mundo do século XIX, abundam imagens de homens vestidos com o rigor social próprio da aristocracia europeia, com seus bigodes e chapéus, mulheres trajando vestidos longos e bufantes, e uma arquitetura marcada pela ostentação e grandeza. É nesse mundo de excessos e elegâncias, de luzes e sombras que nasceu nosso mais famoso poeta ultrarromântico Álvares de Azevedo.
Embora tenha vivido apenas vinte anos (morreu pouco antes de completar 21), Álvares de Azevedo soube como poucos autores brasileiros assimilar a cultura europeia e produzir, influenciado pela obra e pela própria biografia de autores como Lord Byron e Alfred de Musset, uma literatura em verso e em prosa inspirada pelo desejo de uma vida aventureira e romântica, própria de um movimento que então se difundia em solo europeu: o romantismo.
Como o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em seu livro Sociedade do cansaço, cada época possui suas enfermidades fundamentais, e Noite na taverna surge como o escrutínio desses males que, embora sejam até hoje relegados à sombra, constituem parte da alma humana — a parte mais abjeta, aliás. Numa taverna soturna e inundada pelas baforadas de cigarros e charutos, local em que imperam a devassidão e a imoralidade, um grupo de jovens bêbados e degenerados relata as experiências mais aterradoras que viveu até ali.
Como parte da proposta de resgatar grandes obras da língua portuguesa, a Fora do Ar lança uma edição desse clássico do terror nacional especialmente ilustrada por Davi Augusto. Para enriquecer ainda mais essa edição, foram convidados importantes nomes do gênero para comentar a obra e contextualizá-la no quadro da literatura brasileira. Para dar um gostinho do que você vai encontrar no livro, comentaremos brevemente os textos de apoio que estão presentes no livro.
A experiência de mergulhar nesse universo obscuro e assustador é o mote da apresentação intitulada “A noite que já dura mais de cem anos”, elaborada por Lucas Maia, criador do canal sobre cinema Refúgio Cult, no YouTube. Nesse texto, escrito por alguém “nascido mais de 160 após Álvares de Azevedo”, somos confrontados com o testemunho do poder que a literatura tem de transportar o leitor para uma realidade completamente diferente do nosso mundo atual.
Grande entusiasta e pesquisador do cinema de terror e fantasia, Lucas Maia destaca a ausência de limites que os relatos dos cinco jovens protagonistas da obra apresentam. À semelhança dos longas-metragens produzidos durante o movimento cinematográfico francês conhecido como New French Extremity, Álvares de Azevedo confronta o leitor com cenas em que a violência e a maldade se chocam diretamente com a moralidade humana, antecipando os roteiros dos filmes mais perturbadores já realizados.
Logo depois da narrativa, há o posfácio “Cantando a vida, como o cisne a morte: Álvares de Azevedo entre o romantismo, o gótico e o horror”, escrito pelo tradutor, pesquisador e escritor Oscar Nestarez. Nesse texto, somos apresentados aos aspectos histórico, social e cultural que engendraram o romantismo, e descobrimos seus principais autores. Nesse contexto, a obra de Álvares de Azevedo surge como contraponto aos ideais nacionalistas dos primeiros românticos, e é marcada pela falência do modelo articulado por essa primeira geração.
Profundamente desencantado com seu próprio período histórico, cuja percepção surge embotada de esperanças e permeada de melancolia, Álvares de Azevedo teria sido um catalisador das angústias e do subjetivismo de seu tempo, que deram origem à chamada segunda geração do romantismo, ou ainda, ultrarromantismo. Para esta nova geração de autores, o tédio e a melancolia não permitem outra solução para o sofrimento a que se resume a existência humana a não ser o retorno à infância ou à morte. Herdeiro dessas características, em seu Noite na taverna Álvares de Azevedo utiliza uma técnica chamada narrativa moldura, que consiste em inserir, dentro de uma história inicial, outra história, para compor sua obra. Por isso o livro é composto de um prólogo, em que são exibidos os personagens e o cenário, além de cinco contos e um epílogo: todos apresentados e comentados por Oscar Nestarez.
A experiência dessa obra seria, por si só, um profundo mergulho no mundo obscuro e sombrio de Álvares de Azevedo, mas os textos de apoio certamente contribuem para que a viagem seja mais rica e instigante. Por isso, puxe uma cadeira, pegue seu lugar à mesa e se sirva de sua melhor bebida, pois a noite na taverna só está começando.