Ao abrirmos a Fora do Ar, já tínhamos em mente a proposta de resgatar clássicos nacionais esquecidos ou negligenciados ao longo da história e, com ela, uma boa seleção de obras para publicação. Com alguns pequenos ajustes aqui e ali, os primeiros títulos da editora foram definidos e, entre eles, não poderia faltar uma obra muito especial chamada A Rainha do Ignoto, da cearense Emília Freitas.
A ideia original era que essa primeira fantasia e ficção científica escrita por uma mulher brasileira fosse logo uma das primeiríssimas de nosso catálogo, mas decidimos adiar um pouco o lançamento para que ela pudesse receber o maior tratamento editorial até então (levando em conta nossa breve existência, isso é um acontecimento, rs), e fosse publicada com ilustrações e textos de apoio inéditos, inaugurando uma nova linha editorial: autoras da fantasia.
Hoje focarei meus comentários nos textos que enriquecem nossa edição e no porquê você deveria considerar lê-los. Logo no primeiro deles, a apresentação intitulada “Literatura fantástica e o preço de ser mulher”, a jornalista e futuróloga Lidia Zuin apresenta-lhe o que encontrará ao longo da leitura, e também discute a condição de Emília Freitas enquanto autora de uma obra provocativa demais para o seu tempo. Zuin inicia seu argumento com uma comparação entre Emília Freitas e Mary Shelley, autora de Frankenstein: ambas foram ofuscadas pelo patriarcado e sua relevância para a história da literatura só veio muitas décadas depois.
Apesar de não existir o termo feminismo naquela época, hoje a obra poderia facilmente ser encaixada em temáticas feministas, pois evidencia a busca da mulher por equidade. O texto de Freitas, que narra viagens de mulheres que tentam minimizar as injustiças sociais, é contrário à convenção do final do século XIX, época em que a participação das mulheres na literatura foi limitada. Temos, então, um texto que elucida uma das problemáticas centrais do livro — infelizmente ainda nítida em nossa sociedade.
Logo após o término do romance, encontra-se “Entre bacantes, onças e rainhas: As vias do ignoto na literatura de Emília Freitas”, posfácio escrito pelo professor, pesquisador e escritor Enéias Tavares. Dividido em três movimentos, no primeiro são aprofundados os aspectos textuais, contextuais e estruturais de A Rainha do Ignoto; no segundo, são debatidos três aspectos da trama (drama social, elementos místicos e espiritualistas, ambientação fantástica); e, no terceiro, o texto é analisado a partir da matriz mítica e simbólica ocidental e a partir de uma visão dualista entre aspectos ditos “masculinos” e “femininos” — são essas, nas palavras de Tavares, “máscaras conceituais e socialmente constituídas para compreender o contraste entre mundo urbano e sociedade humana e a natureza que os circunda”. Trata-se de um texto que analisa sob diferentes perspectivas toda a simbologia reinterpretada por Emília Freitas em sua obra.
Após ser apresentado à obra e à discussão de seu tema central — justiça e igualdade —, de ser imerso na análise contextual e nos aspectos literários e históricos do livro, você poderá, enfim, aprofundar-se na vida de Emília Freitas a partir da “cronologia comentada”, escrita pela professora e pesquisadora Elenara Quinhones. Nesse texto, estão presentes todos os eventos já registrados na historiografia da cearense. Além dos comentários feitos por Quinhones, há também uma lista com as principais edições ao longo das últimas décadas e com as pesquisas acadêmicas relacionadas à autora e ao livro A Rainha do Ignoto, registradas até o momento, para que você possa buscar novas fontes de pesquisa e referência.
A leitura do romance já seria uma aventura épica por si só, mas certamente com os textos de apoio, esta experiência promete ser ainda mais rica, imersiva e instigante. Fica aqui o meu convite para que você conheça essa figura enigmática que causa temor e fascínio entre os moradores de Passagens das Pedras, uma figura de muitos nomes, mas nenhum tão perfeito quanto Rainha do Ignoto.
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Quem são os colaboradores que escreveram os textos de apoio?
LIDIA ZUIN é jornalista e futuróloga, mestre em semiótica e doutoranda em artes visuais pela Unicamp. Head do núcleo de inovação e futurismo da UPLab, é pesquisadora, editora do blog e curadora de notícias da newsletter UP Future Sight. Professora convidada na Aerolito, FAAP, Sputnik e Umbora, atualmente é docente de tecnologias emergentes e futurismo no Istituto Europeo di Design, além de assinar uma coluna quinzenal sobre futurologia, tecnologia e ficção científica no UOL TAB. Palestrante de dois TED Talks, já apresentou trabalhos em universidades nacionais e estrangeiras e também em eventos, como o Festival Path, FLIP e Campus Party. Seus textos já foram publicados em periódicos acadêmicos e em livros, bem como seus contos de ficção científica em coletâneas físicas e digitais. É autora de REQU13M, a ser lançado pela Editora Fora do Ar.
ENÉIAS TAVARES é professor de literatura na UFSM, onde orienta trabalhos de pós-graduação sobre literatura fantástica e ministra a disciplina “escrita de ficção”. Em 2014, pela Editora LeYa, publicou A lição de anatomia do temível dr. Louison, primeiro volume de série Brasiliana Steampunk, e em 2017, pela AVEC Editora, publicou Guanabara real: A alcova da morte — o primeiro foi finalista do prêmio Argos (melhor romance de 2014) e o segundo ganhou os prêmios Le Blanc (melhor romance fantástico de 2017) e AGES (melhor romance juvenil de 2018). Ao lado de Bruno Matangrano, é responsável pela exposição “Fantástico Brasileiro”, que se tornou livro em 2018, publicado pela Editora Arte & Letra. Em 2019, publicou sua primeira graphic novel: O matrimônio de Céu & Inferno, em parceria com Fred Rubim, pela AVEC. No ano seguinte, o volume foi publicado nos EUA pela Behemoth Comics. Com Rubim também assina a webcomic A Todo Vapor!, publicada no portal CosmoNerd e finalista do 31º Troféu HQ Mix, em 2019. Foi idealizador e organizador da FLISM desde sua primeira edição. Mais de sua produção pode ser conferida em: www.eneiastavares.com.br.
ELENARA WALTER QUINHONES é licenciada em letras (português e literatura em língua portuguesa) pela Universidade Federal de Santa Maria, onde veio a concluir também seu mestrado e doutorado, ambos na área de letras/estudos literários. No mestrado, com ênfase nas escritoras brasileiras do século XIX, pesquisou o livro A Rainha do Ignoto, de Emília Freitas, como a primeira obra utópica brasileira de autoria feminina, e em seu doutorado, ainda sob a perspectiva da autoria feminina oitocentista, focou a obra Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida. Atualmente, trabalha como docente de língua portuguesa para o Ensino Fundamental da Rede Municipal de Esteio, no Rio Grande do Sul, e também como revisora, assessora linguística e preparadora de textos e materiais didáticos para instituições públicas, privadas e individuais.
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Obra relacionada