Autoria: Nestor Turano Jr.
Data: 18 fev. 2020
Minha última leitura pessoal de 2019 foi provavelmente a melhor do ano. Por esse motivo, minha primeira recomendação de 2020 não poderia ser outra se não essa maravilhosa obra de Daniel Keyes, que faz um bem enorme à alma de quem a lê.
Indo direto ao que interessa: Flores para Algernon (1966) narra a história de Charlie Gordon, um homem de pouco mais de trinta anos, cujo Q.I. é baixíssimo, que tem apenas um único objetivo na vida: ficar inteligente para que seus “amigos” gostem dele. Charlie é recomendado por Alice Kinnian, sua professora em uma escola para adultos com deficiência, a participar de um novo procedimento científico — ainda em fase de testes — com o propósito de elevar o grau de inteligência dos pacientes.
O leitor acompanha todo esse processo de transformação intelectual do protagonista, desde o instante em que ele aceita participar do experimento até o desfecho e a consequência desse processo. Todo o romance é narrado a partir dos dezessete relatórios de progresso, escritos em primeira pessoa por Charlie.
O livro poderia ser facilmente classificado apenas como uma ficção científica, mas ele vai muito além. O único elemento sci-fi está no procedimento em si — que poderia muito bem ser qualquer outra coisa: uma intervenção mágica, divina ou mesmo algo sem nenhuma explicação —, pois as principais discussões trazidas pela obra, a meu ver, são a psique humana e as relações sociais.
Nos primeiros relatórios, Charlie escreve de maneira precária e o leitor percebe de imediato quão grande é seu coração: ele deseja apenas o bem de seus colegas de trabalho na padaria, onde executa trabalhos braçais e mecânicos, e onde se diverte com os demais; é generoso com as pessoas; não questiona as autoridades; admira os acadêmicos por seu talento intelectual a serviço da população; entre outros.
Conforme o procedimento vai lhe gerando efeitos positivos, o narrador passa a conduzir melhor seus relatórios, e o leitor percebe a nítida mudança que ocorre com Charlie a partir da linguagem que ele utiliza: uma escrita mais coesa e sem inconsistências gramaticais e semânticas. No entanto, os efeitos superam o simples domínio da língua (oral e escrita): Charlie começa a ser crítico e em poucos meses percebe que somente ele queria o bem de seus colegas de trabalho, que todos se divertiam às suas custas, que as pessoas às quais ele ofertava generosidade gratuita não apenas não lhe correspondiam como também o ridicularizavam pelas suas costas, que certas autoridades talvez devessem ser questionadas, que os acadêmicos não eram tão inteligentes e filantrópicos assim…
Certa vez Cypher, em Matrix (1999), disse que “a ignorância é uma bênção”. Possivelmente alguma das irmãs Wachowski tenha lido a obra de Keyes, dado que esse pensamento é fortemente discutido em Flores para Algernon. No início, mesmo com suas limitações, Charlie se considerava feliz; poucos meses após o experimento, agora com alto nível intelectual, ele passa a perceber a podridão do mundo — inclusive a partir de lembranças familiares agora acessíveis em sua mente —, e isso o entristece. E muito.
Como observadores muito próximos, o leitor e Algernon — seu ratinho de estimação, que havia passado pelo procedimento antes de uma cobaia humana — passam a sentir na pele as dores de Charlie de maneira tão profunda e crível quanto o próprio.
Flores para Algernon, de Daniel Keyes, publicado no Brasil em 2018 pela Editora Aleph, é uma obra sensível, interessante e muito atual. Um convite e um lembrete à reflexão sobre o lugar do próximo e à manutenção diária em nossa carga de empatia.
“Ele comete o mesmo erro que os outros quando olham para uma pessoa de mente débil e riem porque não entendem que existem sentimentos humanos envolvidos. Ele não percebe que eu era uma pessoa antes de vir para cá.”
“Que estranho é o fato de pessoas de sensibilidade e sentimentos honestos, que não tirariam vantagem de um homem que nasceu sem braços ou pernas ou olhos, não verem problema em maltratar um homem com pouca inteligência.”
“Apenas pouco tempo atrás aprendi que as pessoas riam de mim. Agora consigo ver que inconscientemente me juntei a eles, rindo de mim mesmo. Isso dói mais que tudo.”
“Mas, quanto mais me aprofundava nesse emaranhado bagunçado de sonhos e memórias, mais eu percebia que problemas emocionais não podem ser resolvidos como problemas intelectuais.”
“É bom ter amigos…”

Outras postagens do blog

Back to Top